Saturday, May 06, 2006

I/ IV

Três vezes ao leme as reprendeu...


A gruta marinha era meu refúgio. Nenhuma das outras crianças, nenhuma das professoras sabia dela, ou pelo menos nunca vi nenhuma delas se embrenhando pelo caminho íngreme, que começava logo embaixo de uma castanheira seca e terminava no rochedo. Alto, mais cinza do que nossa diretora em seus piores dias, a fenda em sua base invisível para qualquer um que estivesse a mais de vinte passos, que não tivesse praticamente entrado nela sem saber ao perseguir um vira-lata.

Não creio que o conselho de turismo esteja se apressando em dar à gruta um nome, Caverna do Diabo, Gruta dos Amores ou quevalhas, nem inventando uma pitoresca história do folclore local, sobre amantes, piratas ou autóctones. Ou talvez sobre amantes piratas autóctones. Ela era (é? talvez o mar lhe tenha engolido, quem sabe?) uma caverna alta, não muito profunda, com uma espécie de clarabóia que fazia com que fosse menos escura do que parecia, vista de fora. Penedos à sua volta aguentavam o ódio das ondas, de modo que a água no interior era a uma só vez muito límpida e quase perfeitamente parada. A areia grossa, vermelha, era agradável ao tato dos pés, mas muito feia para estrelar alguma brochura, e a pequena plataforma de pedra que se erguia acima da água, meu castelo, era recoberta de um musgo preto e macio que nenhuma quantidade de produtos de limpeza roubados da faxineira havia conseguido eliminar por mais de dois dias.

Sobre a pedra, num dia quieto como um gato persa, foi que encontrei Ela. No olho da memória, que é de um adulto, ela aparece como uma tartaruga velha, grande como os bichos de mar sabem ser grandes, completamente inofensiva. Aos olhos da criança que passara o dia sonhando em matar dragões, era algo de outra natureza, uma imensa massa verde e negra, feia e agourenta, cuja lentíssima respiração se confundia om o barulho das ondas, como se fosse outro mar, a mãe do mar presente, com a velhice saindo das cracas que desabrochavam sobre seu casco quando a água as cobria, os olhos amarelos me fitando com uma curiosidade de ogro.

Fugi, deitando lágrimas de medo, antes que ela abrisse a boca para dizer que sentia cheiro de carne humana. Muitos meses se passaram antes que eu tivesse corafem de visitar a gruta de novo, para encontrá-la vazia.

Nunca pensei que tivesse sido sonho.